Soberania Alimentar

A memória biocultural de povos tradicionais e campesinos e sua relação com a soberania alimentar

Maraísa Resende Braga <bragamaraisa@gmail.com>, doutoranda, PPG em Agroecossistemas – UFSC, Florianópolis – SC

Ilyas Siddique, PPG em Agroecossistemas – UFSC, Florianópolis – SC

Resumo

Os sistemas agrícolas tradicionais e/ou agroecológicos detém atualmente um grande potencial para conservação dos conhecimentos tradicionais associados à conservação da biodiversidade. O conceito de Memória Biocultural define bem como funciona esta associação e o paradigma da Soberania Alimentar alinha-se como um ótimo caminho para sua manutenção. Neste contexto esta pesquisa pretende aprofundar empiricamente esta relação. Para tal, devo lançar mão de uma entrevista aberta sobre a memória biocultural das famílias, e relacioná-las com avaliações em soberania alimentar nas distintas comunidades campesinas estudadas. Dessa forma, espero compreender onde qual a situação da memória biocultural e quais as comunidades bem consolidadas no contexto da soberania alimentar, possibilitando, assim, planejamento de ações a médio e longo prazo.

Introdução

Atualmente percebemos um impasse entre os modelos de agricultura vigentes: monoculturas de larga escala para produção de commodities que utilizam fertilizantes e venenos promovendo a concentração de terras e renda (Mitidiero-Junior and Goldfarb, 2021) e por outro lado sistemas agrícolas em pequena escala para produção de alimentos, mais diversos e que possuem poucos investimentos (Altieri et al., 2021). Entre eles há um longo gradiente de formas de cultivar e de se relacionar com o meio. Muitos sistemas agrícolas estão ameaçados por fatores como as mudanças climáticas, o aumento da sobre-exploração dos recursos naturais e situações de conflito (FAO, 2018; Food Security Information Network, 2018) . Ainda, conhecimentos e usos da biodiversidade são atualmente ameaçados pelo processo de globalização cultural e comercial que massificou tecnologias químicas e genéticas na agricultura (Halffter Salas, 2009). Este é um quadro complexo onde tais problemas exógenos levam ao êxodo rural devido à baixa viabilidade econômica das atividades aí desenvolvidas, resultando em abandono das práticas agrícolas tradicionais, na perda de variedades endêmicas e da agrobiodiversidade (Halffter Salas, 2009).

Desenhado como um paradigma alternativo ao atual sistema alimentar dominante, o conceito de soberania alimentar foi elaborado a muitas mãos: agricultores, indígenas, pescadores, povos sem-terra, organizações camponesas, movimentos ambientais e urbanos (La Vía Campesina, 2007). Sua construção teve origem na década de 90, se concretizando em diversos encontros da Via Campesina, uma organização internacional de articulação dos povos do campo. A soberania alimentar é definida por um controle social do sistema agroalimentar (Chappell and Schneider, 2016) e mais precisamente “é o direito dos povos a alimentos saudáveis e culturalmente apropriados, produzidos através de métodos ecologicamente adequados e sustentáveis, e seu direito de definir seus próprios sistemas alimentares e agrícolas.” (La Vía Campesina, 2007).

A conservação da diversidade genética, das espécies, das interações e dos ecossistemas tem um grande potencial associado à manutenção dos modos de manejo do meio exercidos por tais povos (Arruda, 1999). Nessa perspectiva, a compreensão da interação da diversidade cultural da espécie humana e da diversidade biológica resultou na formulação do conceito de Memória Biocultural, que se compõem pela diversidade genética, linguística e de conhecimentos  (Toledo and Barrera-Bassols, 2008). A maior expressão da memória biocultural de nossa espécie se encontra nas mãos de povos e comunidades tradicionais e é atualmente “relembrada” através do reconhecimento desenvolvido pela agroecologia (Toledo and Barrera-Bassols, 2008).

Entendendo a memória biocultural como um patrimônio e como uma propriedade emergente intrínseca a cada local, percebe-se que, desta interação, se produz as condições de materialização da vida. Neste sentido a memória biocultural se conecta ao conceito da soberania alimentar. Dessa forma, Michael Pimbert (2018) reconhece uma estreita relação entre a diversidade biocultural, a agroecologia e a soberania alimentar que são organizados por indígenas ou comunidades que fazem a “gestão adaptativa local da diversidade biocultural do território” e mantém os modos de subsistência. Neste contexto, e frente a grandes instabilidades políticas, sociais, climáticas e ambientais, é necessário refletir sobre quais sistemas agrícolas são capazes de se sustentar ao longo do tempo promovendo aumento de sua diversidade e capacidade adaptativa (Urruty et al., 2016).

  • Objetivos

Nesta pesquisa pretendo relacionar empiricamente estes grandes arcabouços, quais sejam a Memória Biocultural e a Soberania Alimentar, tendo como enfoque a conservação da natureza e dos modelos de agricultura sustentáveis. Mais especificamente pretendo 1) compreender a memória biocultural de povos tradicionais através de entrevistas abertas contextualizadas cultural e ambientalmente, 2) entender como a soberania alimentar se estrutura em comunidades campesinas no Brasil e quais os pontos mais fragilizados e 3) compreender empiricamente a relação entre a memória biocultural e a soberania alimentar nas comunidades estudadas.

Metodologia de pesquisa

  • Instrumento de avaliação da Soberania Alimentar

A avaliação da Soberania Alimentar (SOBAL) deve ser adequada à realidade brasileira e com boa acurácia aplicada a partir de um roteiro de entrevista semiestruturada e, considerando a alta diversidade de sistemas agrícolas, que seja aplicável no nível local, ou seja, nas comunidades campesinas. A partir da revisão bibliográfica identificamos seis eixos temáticos da SOBAL: Acesso a recursos, Modelo de produção, Transformação e Comercialização, Direito humano à alimentação, Políticas agrárias e Organização da sociedade civil, e Cultura e sistemas alimentares (La Vía Campesina, 2007; Ortega, 2010; Pimbert, 2018). Deste arcabouço teórico, a busca por indicadores chegou a sete artigos que se propunham a avaliar agroecossistemas no Brasil (Petersen et al., 2021), ou a soberania alimentar em outros países no nível local (Badal et al., 2011; Blue Bird Jernigan et al., 2021; Cândido and Sturza, 2018; Vallejo-Rojas et al., 2016; Waldmueller and Avalos, 2015), ou a segurança alimentar no Brasil (Segall-Corrêa and Kepple, 2021). Nestes trabalhos encontramos 204 indicadores e, seguindo os critérios citados, selecionamos 60. Estes indicadores compilados foram transformados em perguntas abertas. E agora seguem para o processo de validação com especialistas. 

  • Processo de Validação

Este conjunto de indicadores passará por um processo de validação utilizando a técnica Delphi (Marques and Freitas, 2018; Varela-Ruiz et al., 2012). Nesta metodologia, especialistas das diversas áreas da soberania alimentar receberão o convite para participarem do processo de validação do questionário de acordo com a relação entre a sua área de atuação e os eixos de SOBAL. Desta forma, pesquisadores(as), ativistas dos movimentos sociais, extensionistas ou agricultores(as) serão convidados para avaliarem a importância e adequação das perguntas de acordo com a escala de Likert (Dalmoro and Vieira, 2013). Nela, as perguntas devem ser avaliadas com notas de 1 a 5 quanto a sua Importância e Adequação (sendo 1 = muito ruim e 5 = muito bom). A Importância é definida como “a importância de cada pergunta dentro do seu eixo” e a Adequação é “o quanto esta pergunta é adequada para avaliar este quesito junto ao agricultor/ campesino”. Após enviá-lo à equipe de pesquisa, as respostas da primeira rodada serão reenviadas aos participantes juntamente com um feedback, para sofrerem nova avaliação por estes, este é um passo importante da técnica Delphi e que permite que cada especialista conheça a opinião do grupo e possa reavaliar a entrevista (Marques and Freitas, 2018; Varela-Ruiz et al., 2012). Obteremos consenso para as respostas quantitativas através do cálculo das medianas da escala de Likert recebidas na avaliação da Importância e da Adequação. O processo seguirá até que o conjunto de indicadores obtenha um consenso sem novas contribuições (Varela-Ruiz et al., 2012). Se você trabalha, pesquisa ou conhece alguém que atue na área de Soberania Alimentar no Brasil, por favor participe ou encaminhe a validação do Instrumento de avaliação de Soberania Alimentar. Depois de validado, o questionário será aplicado nas comunidades campesinas. 

  • Entrevistas em campo

A entrevista será aplicada em comunidades campesinas com sistemas agrícolas tradicionais ou agroecológicos no estado de Santa Catarina e em Minas Gerais – Brasil. As comunidades agricultoras estudadas podem ser quilombolas, ribeirinhas, pescadores, agricultores familiares, etc. As comunidades campesinas estão sendo selecionadas e convidadas para participarem da pesquisa. A primeira visita às comunidades deverá ocorrer através de um grupo focal para discutir o tema geral do projeto de pesquisa e conhecer os participantes. As entrevistas semi-estruturadas serão aplicadas aos responsáveis pela família, sendo pelo menos um integrante maior de 18 anos. O número de famílias entrevistadas seguirá até se obter o esgotamento da informação na comunidade. As famílias serão indicadas a partir de um contato prévio e do interesse da comunidade. As entrevistas também serão compostas pelo conjunto de perguntas abertas referentes ao contexto da memória biocultural da família e da comunidade. Isso permitirá abordar este tema de forma qualitativa.

  • Análises

A partir das entrevistas realizadas nas comunidades agricultoras, as respostas sobre a soberania alimentar passarão por uma análise de conteúdo com elaboração de categorias (Bardin, 2016) e então serão analisadas em relação ao conceito de Soberania alimentar. Conforme se aproximem ou se afastem deste, receberão valores entre 1 e 5 (sendo 1 muito ruim e 5 muito bom). Com esta  hierarquização, obteremos um gráfico de radar e a partir dele realizaremos o cálculo da área no interior do gráfico para cada comunidade fornecendo uma avaliação global de sua soberania alimentar nos seis eixos. As respostas da entrevista aberta de memória biocultural também passarão por uma análise de conteúdo e categorização.

  • Aspectos Éticos

Os pesquisadores se comprometem a conduzir o Projeto e zelar pela confidencialidade dos dados e privacidade dos participantes, de acordo com a resolução CNS 510/2016 (pesquisas em Ciências Humanas e Sociais), bem como as demais normativas e legislações vigentes e aplicáveis. Além disso, os pesquisadores declaram conhecer e cumprir os requisitos da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Nº 13.709, de14 de agosto de 2018) quanto ao tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis que serão utilizados para a execução do presente projeto de pesquisa. Ambas etapas, validação e entrevistas em campo, foram aprovadas no Comitê de Ética e Pesquisa em Ciências Humanas – CEPSH-UFSC (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética nº 62721722.9.0000.0121) e serão aplicadas após a concordância das comunidades e especialistas escolhidos. Esta pesquisa tem o compromisso de obtenção da anuência das comunidades envolvidas por meio das respectivas organizações ou conselhos locais, sem prejuízo do consentimento individual. O processo de consentimento ocorrerá por meio do uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de forma online para a validação da entrevista e de forma presencial para sua aplicação em campo.

Referências

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